sábado, 5 de novembro de 2011

Carta de Amor


Mulher, 


Vem ser a minha linguagem. Pois ela e o tempo são aquilo que eu sou. Não sei onde começa a linguagem e termina o tempo: eu te quero justamente aí. Mulher, vem ser a alma do meu tempo. 

Mas vem ser meu corpo, mulher. Este imperfeito e lamentável corpo que acaba nas mãos e recomeça no instante. Onde cada frase, mesmo aquela impronunciada, vive a angústia de não poder dizer mais. Pois cada parte do meu corpo quer dizer a frase, mulher, a frase definitiva e insuperável, depois da qual só pode haver silêncio. Meu corpo é teu quando busca o silêncio, e quando fala pelos olhos, pela boca, pelo sexo, pelo suor, pelas mãos onde eu acabo. Onde tu começas. Vem ser meu fim, mulher.

Mulher, eu quero ser teu idioma. Quero ser teu sânscrito. Teu hebraico. Teu iídiche. Teu grego. Teu latim. Quero ser teu aramaico, mulher. Aos 33 anos, quero falar a língua do Filho. Eu quero a Idade da Paixão. Quero fazer uma pergunta em esperanto – Em que língua pensa Deus? Assim Ele te pensa, mulher.

Traduzir-te para o espanhol dos meus bisavós paternos, para o francês dos meus bisavós maternos, para o último ritual dos judeus antes de se converterem em cristãos novos. Tudo isso faz muito tempo. E você estará lá, no ponto indefinido em que o tempo e a linguagem se confundem. No princípio era o verbo, depois mergulhamos naquilo que passa. Presta atenção, mulher: é o tempo que passa.

Mulher, quero ver em ti as formas da minha obsessão. Quero tua mão sobre meu desespero. Quero teu grito sobre a minha felicidade. E assim tu serás a boa e a má notícia, irmanadas na vertigem do teu medo. E do teu medo nascerá o alento. O alento mais intenso que o mundo pôde imaginar no tempo.

Em ti, mulher, já mora a minha fantasia mais vital. O sonho dos 365 sonos do ano. Já faz 14 anos que estou nesta cidade, mulher. Jacó esperou 14 anos por Raquel. Esperou e trabalhou. Eu espero, escrevo, sonho. Vem ser minha cidade, mulher.
Quero você na minha palavra, na minha letra, no meu número. Na mínima serifa, Na gotícula de tinta. No papel que ainda me aguarda no escuro da gaveta. Na caneta que está sendo fabricada pela Bic, mas um dia vou usar. No editor de texto que ainda não foi inventado pela Microsoft. Na pausa que faço antes de respirar e escrever.

Quero a substância dos teus verbos, a ação dos teus nomes. Quero o evidência da tua beleza e o milagre de teu estilo. Quero a fé e a ciência de ti. Vem ser meu lapsus linguae, meu rascunho, minha versão final. Vem ser a medida de todas as coisas. Vem ser a voz. Acredita, mulher: é a minha voz. 

Vem escrever meu Guerra e Paz, vem tocar meu Navio Fantasma, vem filmar minha Dolce Vita, vem colorir o meu Matisse. Vem ser flor e anjo – dentro do meu sangue enlouquecido pela diástole. Conversa com meus fantasmas inofensivos. Vê meu cão que já morreu, mas ainda me guarda. Escuta meu tio doente e esclerosado que cantava músicas da Península Ibérica. Ouve bem, mulher: é o canto mais belo.

Faz de mim teu abalo e teu amparo. Pois a vida – já dava a entender um velho sábio cego – é um jardim de caminhos que se bifurcam. A vida é um grande Y. Faz de mim a eterna ocorrência das dualidades: luz e trevas, guerra e paz, prazer e poder, dor e gozo, bem e mal.

Por isso me rebelo diante do vazio que nos separa. Minhas palavras estão em guerra: querem a paz final entre o dizer e o ser. Faz de mim a morte do que se duplica: tempo-linguagem, uma só mulher.

Amor.


Paulo Briguet - Jornalista em Londrina

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